Ultrassom terapêutico. Mas, será que é mesmo?
O ultrassom terapêutico (US) é uma das modalidades eletroterapêuticas mais utilizada em reabilitação. Essa modalidade vem sendo utilizada por mais de 70 anos no tratamento da dor e lesões musculoesqueléticas. Apesar do número de décadas em uso, o US ainda não foi capaz de apresentar evidências científicas que justificam sua aplicação.
Aprendemos na graduação que o US é capaz de diminuir a dor, acelerar o processo de cicatrização tecidual e melhorar a extensibilidade do colágeno através dos estímulos mecânicos que a onda sonora produz nos tecidos. Esse estímulos, oriundos do processo de cavitação e efeito das micro-correntes, geram efeitos térmicos e atérmicos. Esses efeitos são responsáveis pelas respostas fisiológicas e, possivelmente, pelos efeitos terapêuticos citados.
Estudos biofísicos demonstram a existência dos efeitos mencionados em experimentos in vitro. Entretanto, não há evidências de que os efeitos biofísicos do US ocorrem in vivo, ou seja, ainda não foi possível provar a existência da cavitação e das micro-correntes em experimentos in vivo usando as intensidades consideradas terapêuticas (Baker et al., 2001). Ainda, não há evidências relacionando os benefícios do US com a alteração da permeabilidade da membrana celular in vivo (Baker et al., 2001), o que seria responsável pelas alterações celulares. No estudo de Hogan et al. (1982), os autores demonstraram que o US pulsado não altera o fluxo sangüíneo nem a angiogenesis em modelos animais.
Além disso, há evidências de ensaios clínicos randomizados que demonstram que o US não afeta a velocidade de cicatrização tecidual (Baker et al., 2001).
Assumir hipóteses não testadas in vivo, baseando-se em evidências in vitro, é uma extrapolação inapropriada (Dyson, 1987). Pois é, Isso já seria suficiente para repensar o uso do US na prática clínica. Não vamos nos precipitar, veremos o que as revisões sistemáticas e alguns ensaios clínicos randomizado dizem sobre o US no tratamento da dor e lesões musculoesqueléticas:
- Robertson & Baker (2001) – ensaios clínicos randomizados comparando o US e o placebo demonstram que US não apresenta efeito superior ao placebo no tratamento de pessoas com dor e lesões musculoesqueléticas;
- Shanks et al. (2010) – não existe evidências de alta qualidade que sugerem que o uso do US é efetivo e traz benefícios no tratamento de condições musculoesqueléticas dos membros inferiores;
- Ebadi et al. (2014) – Revisão sistemática da Cochrane sobre a aplicação do US no tratamento da dor lombar crônica – não existe evidências científicas de alta qualidade que suportam o uso do US na melhora da dor e na qualidade de vida em pacientes com dor lombar crônica inespecífica;
- Griffin et al. (2014) – Revisão sistemática da Cochrane sobre o uso do US para fraturas em adultos – atualmente não há evidências do benefício do uso do ultrassom pulsado de baixa intensidade (LIPUS) no tratamento de fraturas completas ou fraturas por estresse em adultos;
- Desmeules et al. (2014) – US não é superior ao placebo e também não adiciona benefícios quando associado à exercícios na redução da dor e melhora da função no tratamento de tendinopatias do manguito rotador;
- Warden et al. (2008) – LIPUS não oferece nenhum benefício adicional ou é melhor que o placebo e/ou exercício excêntrico no tratamento dos sintomas associados a tendinopatia patelar;
- Schuhfried et al. (2016) – esse estudo não observou influências positivas diretas, nem efeitos adversos nos parâmetros de condução nervosa, após a aplicação de US em nervos periféricos;
- Xia et al. (2017) – as evidências atuais não são claras o suficiente para suportar o uso do US como sendo um método eficiente no tratamento de pontos-gatilhos na Síndrome Miofascial;
- Rutjes et al. (2010), Yegin et al. (2016) e Zhang et al. (2016) – a aplicação de US em artrose de joelho foi superior ao placebo na melhora da dor e da função e é recomendado para o alivio da dor e melhora da função, porém o efeito é limitado a um período curto de tempo;
- Mascarin et al. (2012) – cinesioterapia e US foram efetivos na diminuição da dor e melhora da função em pacientes com artrose bilateral de joelho, comparado ao pré-tratamento. Porém, o grupo da cinesioterapia demonstrou melhora superior ao grupo do US;
- Ulus et al. (2012) – adicionar US ao programa convencional de fisioterapia não traz benefícios superiores no tratamento de artrose de joelho.
Conclui-se que as evidências biofísicas são insuficientes para prover uma fundação científica que suporta o uso clínico do US no tratamento da dor e lesões teciduais (Baker et al. 2001). As revisões sistemáticas e os ensaios clínicos randomizados não demonstram benefícios na aplicação do US.
Seria isso uma mera coincidência?
Particularmente, eu gostaria muito que tudo que é dito sobre o US fosse verdade, pois facilitaria muito o meu trabalho e ajudaria meus pacientes. Infelizmente, em 70 anos, o US não conseguiu demonstrar suas propriedades terapêuticas nas aplicações em seres humanos.
Está na hora de aposentar o ultrassom “terapêutico”.
Equipe Fisio na Pauta
Como citar esse artigo:
Lopes, H. (2017). Ultrassom terapêutico. Mas, será que é mesmo? Retirado de: https://fisionapauta.com.br/ultrassom-terapeutico-mas-sera-que-e-mesmo/
Referências bibliográficas:
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Desmeules, F., Boudreault, J., Roy, J. S., Dionne, C., Frémont, P., & MacDermid, J. C. (2015). The efficacy of therapeutic ultrasound for rotator cuff tendinopathy: A systematic review and meta-analysis. Physical Therapy in Sport, 16(3), 276-284.
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10 comentários
Rafael · 11/07/2017 às 21:35
Gui,
Pra ser sincero: sempre levei isso em consideração e atualmente, só uso quando o paciente “acha” que precisa, ou seja, faço tudo que acredito ser benéfico e uso o US por alguns minutos para garantir a aderência do pt no programa….abraços.
Heric Lopes · 11/07/2017 às 23:11
Fala Fera! Agradeço o comentário. Eu acredito que educar o paciente de maneira adequada (baseando-se nas evidências) tem mais impacto na aderência ao tratamento.
Dia 13 sai o podcast sobre o tema e discuto o que é low-value healthcare, US e a dissonância cognitiva.
Valeu!
Arthur Alves · 12/07/2017 às 07:05
Acredito muito nisso… mesmo na época da faculdade nunca acreditei muito no TENS (da maneira que é aplicado), no US e principalmente no OC, por achar muito empíricas as maneiras de aplicação e como também muito vagas as descrições dos possíveis efeitos benéficos.
Mas tenho uma pergunta: atualmente, muito se fala e inclusive já existem artigos citando os benefícios da TOC – Terapia por Ondas de Choque – em reparação tecidual cartilaginosa e redução do quadro álgico. Você tem alguma evidência científica também mostrando ou refutando os efeitos da TOC?
Desde já meu obrigado!
Heric Lopes · 13/07/2017 às 14:46
Grande Arthur,
Muito obrigado pela leitura e pelo comentário.
A sua pergunta é muito interessante, uma vez que eu fiz o episódio-piloto do Fisio na Pauta Podcast sobre a Terapia por Ondas de Choque (TOC) e acabei lendo bastante sobre o assunto.
A gente tem que tomar um certo cuidado quando falamos de TOC, pois existem aparelhos capazes de gerar ondas de choque (OC) e existem aparelhos que se dizem capazes de gerar OC, mas que já foram desbancados pela ciência de base (biofísica).
Foi interessante de ler essa discussão no meio cientifico.
Os aparelhos capazes de gerar OC são aquele que possuem fontes eletrohidráulicas, eletromagnética ou piezelétrica. Os outros aparelhos, que também dizem que geram OC, são aqueles aparelhos que possuem um aplicador em forma de pistola. Eles possuem um esfera metálica que é arremessada, por ar comprimido, contra a extremidade que fica em contato com a pele do paciente. Porém, na realidade essa pistola de ar comprimido gera um pulso de onda acústica que se propaga radialmente, ao invés de uma OC que converge em um ponto focal com alta energia.
Por conta disso, muito pesquisadores denominam a aplicação com a pistola de ar comprimido como sendo Radial Pulse Therapy (RPT) e não TOC.
Até onde eu sei, existem duas revisões sistemáticas (RS) sobre TOC na melhora da dor em condições musculoesqueléticas, uma realizada por uma pesquisadora independente e outra realizada por um pesquisador que é consultor da Electro Medical Systems (que participou da discussão mencionada acima), empresa suíça fabricante do aparelho DolorClast (pistola de ar comprimido). Existem 5 condições que a TOC traz benefícios.
A fasciopatia plantar e a tendinopatia calcificante do manguito rotador são as condições mais estudas na melhora da dor, são as que possuem maiores evidências de benefícios.
No caso de tendinopatias calcificantes do manguito rotador, é importante esclarecer, que a melhorar da dor e da função após o tratamento com a TOC não está relacionada à eliminação das calcificações, a melhora da dor é um efeito inespecifico da aplicação.
Nos casos de tendinopatias do calcaneo, tendinopatias do manguito rotator não calcificantes e epicondilite lateral, só usaria a TOC em ultimo caso. Acredito que há outras intervenções mais eficazes, como exercícios nesses casos.
Há quem diga que a melhora da dor é simplesmente pela neuromodulação da dor, ou seja, um estimulo doloroso mais intenso, alivia a dor inicial.
Em relação a cartilagem, há evidências que a TOC estimula a atividade dos condrócitos, aumentando o volume da cartilage articular. Porém, são experimentos realizados em ratos, usando os aparelhos originais e não a pistola de ar comprimido.
Assumir que isso também ocorre no ser humano e começar a aplicar a TOC nesse tipo de problema, na minha opinião, ainda não é apropriado. Precisamos de ensaios clínicos randomizandos de qualidade (que ainda não foram feitos) para esclarecer qual o efeito em seres humanos.
Espero ter ajudado com a resposta e se tiver interesse, posso mandar o texto do podcast piloto com as referencias bibliográficas.
Muito obrigado novamente.
Abraço!
Daniel Campos · 19/07/2019 às 12:57
Parabéns pelo site! Sempre me incomodou o pouco apreço que boa parte da fisioterapia tem por evidências científicas, se contentando com a “opinião do especialista” ou “no meu paciente funciona”. Ótimo ver alguém que questiona algumas práticas consagradas, pois esse é o caminho para intervenções que possuam efeito comprovado. Continue com o bom trabalho.
Heric Lopes · 20/07/2019 às 11:25
Daniel,
Muito obrigado pelo comentário.
Essa falta de apreço é algo decepcionante. Acredito que isso contribui para a desvalorização da profissão.
Seguirei questionando se a prática da Fisioterapia está de acordo com os conhecimentos científicos atuais.
Grande abraço.
Eliel Silva · 09/01/2020 às 11:40
Sou estudante de Fisioterapia, moro no Brasil, estou no 3º Ano da Faculdade. Acabei de conhecer o Fiso na Pauta, e estou amanda isso tudo kkk, Já escutei quase todos os podcasts e nossa, saber que os assuntos da Fisioterapia estão sendo discutidos por profissionais simpáticos, educados e inteligentes me deixa mais contente em relação à profissão! Sem dúvidas o Fisio na Pauta contribui para a minha formação!
Heric Lopes · 12/01/2020 às 14:03
Eliel,
Muito obrigado pelo comentário. Fico feliz em saber que o Fisio na Pauta contribui para sua formação.
A intenção é essa!
Grande abraço!
Henrique · 25/07/2020 às 08:12
O difícil é tirar o paradigma do ultrassom da cabeça dos próprios fisios… O famoso “mas eu aprendi assim” é o argumento principal… O dia que fisio começar a se importar com a ciência e parar de acreditar em historinhas de dragões isso muda
Heric Lopes · 26/07/2020 às 14:17
Grande Henrique,
Pois é… há muitos dragões e unicórnios na fisioterapia. Muita gente acredita que porque “aprendeu assim”, vai ser sempre assim. A profissão e a ciência evoluem, temos que ficar ligados nisso!
Obrigado pelo comentário!
Abraço.