O Movimento Humano e o Modelo de Restrições

Publicado por Alexandre Campelo em

A fisioterapia é um método de tratamento que se concentra nas ciências do movimento. Com o objetivo de compreender a diversidade de movimento que conseguimos produzir, diferentes abordagens teóricas surgiram ao longo do tempo, utilizando-se de diferentes métodos e paradigmas. Atualmente, a área de estudo denomidada “Comportamento Motor” é dedicada aos seguintes campos de investigação: Desenvolvimento, Aprendizagem e Controle Motor.

 

Historicamente, as abordagens iniciais e as principais origens do estudo científico do comportamento motor foram dadas por conceitos anatômicos e biomecânicos do século XIX (Weber & Weber, 1836) e conceitos da neurofisiologia no ínicio do século passado (Foerster, 1902). No período seguinte, sob forte influência das teorias cognitivas e fenomenológicas (Weizsacker, 1940; Buytendijk, 1956; Grupe, 1969), advindas da psicologia comportamental, as investigações sobre o comportamento motor adquiriram uma abordagem mais analítica e experimental.

 

Apesar do rápido desenvolvimento e aceitação desses métodos e teorias no meio acadêmico, eles traziam uma abordagem estritamente biológica nas tentativas de explicação do comportamento motor. Além disso, as alterações das habilidades motoras eram discutidas sob o enfoque do resultado final, em detrimento do processo que levava a essas alterações (Connolly, 1970). Dessa maneira, a negligência do papel do ambiente e do nível de experiência prática individual foi alvo de críticas dos pesquisadores do comportamento motor. À partir da consideração desses e outros fatores para a compreensão do comportamento motor, houve o fortalecimento das idéias que originaram, posteriormente, a teoria dos sistemas dinâmicos e a abordagem ecológica à percepção-ação, propostas por Kugler, Kelso e Turvey (1982), e Gibson (1986), respectivamente. Em meados do século XX, muitos pesquisadores consideraram em seus estudos a influência e a interferência do ambiente e das restrições impostas pela tarefa na organização do movimento. Então, a análise do comportamento motor não era mais restrita ao produto final da ação motora, mas observando a estruturação dos elementos corporais de acordo com o ambiente e a tarefa executada.

 

Em 1984, Mechling definiu o sistema neuromotor humano como um “… sistema completo que participa da produção de ações motoras intencionais e orientadas a um objetivo. Descreve e explica as estruturas e funções, seu equilíbrio e mudanças durante os processos de desenvolvimento, aprendizagem e treinamento, bem como o intercâmbio de informações e energia, que constituem a base para este sistema. Também são levados em consideração aspectos externos como mudanças no espaço e no tempo, […] assim como aspectos internos como a cognição e a experiência prática” (Mechling, 1984, p.89). Seguindo essa abordagem, Karl Newell (1986) sugeriu um modelo teórico para demonstrar que os movimentos surgem das interações do organismo, do ambiente no qual os movimentos ocorrem e da tarefa a ser executada. O autor suporta a idéia de que, se os limites ou restrições de um desses três fatores mudarem, o movimento resultante também se altera. Como mostra a figura abaixo, o modelo representa os três fatores como as pontas de um triângulo, com um círculo de flechas representando suas interações.

 

Fig 1. O modelo de restrições de Karl Newell (1986)

Para entender uma ação motora, devemos entender as relações entre as características do indivíduo que se movimenta, do meio que o cerca, bem como o objetivo ou propósito de seu movimento. Da interação de todas essas características emerge o movimento específico.

 

Pode-se compreender a importância do modelo de restrições ao considerar a afirmação de Kugler et al. (1980, p.9) de que “a organização nos processos biológicos ocorre devido à dinâmica e às restrições tanto anatômicas quanto funcionais que surgem, servindo apenas como orientação para a ação; não é que as ações sejam causadas pelas restrições, mas sim que algumas ações são excluídas por elas”. Esse pensamento sobre os processos e propriedades emergentes, denominados processos de auto-organização, originalmente promovido nas ciências físicas, ajudou a conduzir a uma mudança de paradigma no domínio do comportamento motor.

 

CATEGORIAS DE LIMITAÇÕES DA AÇÃO MOTORA

 

As restrições são interpretadas como condições de “fronteira” que limitam as configurações da ação motora. Existem restrições em todos os níveis de análise do sistema neuromotor, incluindo bioquímicas, morfológicas, neurológicas e comportamentais. Essas condições de fronteira, em cada nível de análise, podem ser espaciais e/ou temporais. Nesse sentido, a maioria das restrições à ação estão mudando ao longo do tempo em graus variados. As restrições do indivíduo são aquelas apresentadas em diferentes níveis de análise: química, neural e morfológica. A análise deve iniciar à nível morfológico, como, por exemplo, as propriedades físicas de altura, peso e forma do indivíduo. Em seguida, as restrições à niveis morfológicos devem ser relacionadas às propriedades das estruturas neurais efetoras e como se dá o processo de seu funcionamento à nivel bioquímico. O trabalho experimental de Merzenich e Jenkins (1993) teve o objetivo de investigar a plasticidade adaptativa do sistema nervoso central e das áreas cerebrais do cortex sensorio-motor. Os autores foram capazes de mostrar que o tradicional mapa do homúnculo cortical é muito estático para representar estrutura e função cerebral. Os resultados experimentais mostraram claramente que a prática e a experiência podem mudar as restrições neurais, levando o indivíduo a utilizar diversas áreas corticais durante uma mesma ação motora. As restrições ambientais são as propriedades físicas externas ao organismo. A maioria das pesquisas em aprendizagem e controle motor são conduzidas dentro dos limites de um ambiente de laboratório, onde as propriedades ambientais, como a altitude, temperatura, superfície de contato, entre outras, são controladas para não influenciar no desempenho de uma determinada atividade motora. Ainda assim, devemos reconhecer que as condições “controladas” do laboratório estão influenciando às restrições ao analisar determinada ação.  

 

As restrições da tarefa são refletidas em duas categorias: (a) o objetivo da tarefa e (b) as regras que especificam ou restringem a dinâmica do movimento para atingir um objetivo. Nesse contexto, a maioria das ações na vida cotidiana são limitadas apenas pelo objetivo da tarefa. Este objetivo pode ter mais de uma dimensão, por exemplo, espaço e tempo; Ou mais de um componente, como no desempenho de tarefas duplas (ex: pular e bater palmas). No entanto, muitas vezes na prática de exercícios físicos, no esporte e em alguns outros contextos de movimento, há regras especificando e/ou restringindo as propriedades do movimento. Por exemplo, na natação, há restrições no padrão de movimento dos membros de acordo com o estilo de nado que está sendo executado.

 

A idéia de restrições da tarefa pode ser elaborada ao considerar o papel de um professor, treinador ou terapeuta como um agente de mudança que está impondo restrições adicionais ao contexto de aprendizagem ou reaprendizagem motora (Newel, 1986; Newell & Valvano, 1998). Essas restrições adicionais podem assumir a forma de alterar os objetivos das subtarefas na aprendizagem ou as condições ambientais de prática. Assim, a extensão das restrições pode ser vista como um parâmetro de controle durante uma atividade motora. O desafio para o agente de mudança é encontrar os parâmetros de controle mais eficazes e relevantes que sejam capazes de induzir mudanças adaptativas na organização do movimento final.

 

Ao considerar a prevenção de lesões musculoesqueléticas, o fisioterapeuta deve ser capaz de entender e, se possível, controlar as restrições existentes, seja do invíduo, da tarefa ou do ambiente. Por exemplo, afim de prevenir as quedas recorrentes em idosos, o fisioterapeuta deve identificar se há diminuição da força muscular, do equilíbrio, da confiança ao caminhar, etc; identificar as condições do ambiente doméstico como escadas irregulares, pisos escorregadios, iluminação; e entender o nível de independência e autonomia funcional do idoso, afim de avaliar as tarefas que devem ser estimuladas ou restritas.

 

Em resumo, os cientistas do movimento tornaram-se altamente proficientes em medir a coordenação e o controle de movimentos descritos como habilidosos, mas uma teoria unificada ou unificadora, e testável, que pode explicar como essas habilidades são desenvolvidas, aprendidas e controladas, ainda não foi completamente estabelecida. Caso queira saber mais sobre as teorias do comportamento motor leia o artigo de co-autoria do Professor Marcio Oliveira entitulado “Motor behavior as a scientific field: A view from the start of the 21st Century”.

 

“Identificar nossas limitações é o primeiro passo para superá-las” – Augusto Branco

 

Alexandre Campelo

Equipe Fisio na Pauta

 

 

Referências bibliográficas:

Weber, W., & Weber, E. F. (1836). Mechanik der menschlichen Gehwerkzeuge: eine anatomisch-physiologische Untersuchung (Vol. 1). Dietrich.

 

Foerster, O. (1902). Die Physiologie und Pathologie der Coordination. Рипол Классик.

 

Weizsäcker, V. (1940). Der Gestaltkreis: Theorie der Einheit von Wahrnehmen und Bewegen. Georg Thieme.

 

Buytendijk, F. J. (2013). Allgemeine Theorie der menschlichen Haltung und Bewegung: als Verbindung und Gegenüberstellung von physiologischer und psychologischer Betrachtungsweise. Springer-Verlag.

 

Grupe, O. (1969). Grundlagen der Sportpädagogik. JA Barth.

 

Connolly, K. J. (1970). Skill development: problems and plans.

 

Kugler, P. N., Kelso, J. S., & Turvey, M. T. (1982). On the control and coordination of naturally developing systems. The development of movement control and coordination, 5, 1-78.

 

Gibson, J. J. (1986). The Ecological Approach to Visual Perception. Psychology Press.

 

Mechling, H. (1984). Bewegungswissenschaft. Carl, K./Kayser, D.

 

Newell, K. M. (1986). Constraints on the development of coordination. Motor development in children: Aspects of coordination and control, 34, 341-360.

 

Kugler, P. N., Kelso, J. S., & Turvey, M. T. (1980). 1 On the Concept of Coordinative Structures as Dissipative Structures: I. Theoretical Lines of Convergence. Advances in Psychology, 1, 3-47.

 

Merzenich, M. M., & Jenkins, W. M. (1993). Reorganization of cortical representations of the hand following alterations of skin inputs induced by nerve injury, skin island transfers, and experience. Journal of Hand Therapy, 6(2), 89-104.

 

Newell, K. M., & Valvano, J. (1998). Movement science: Therapeutic intervention as a constraint in learning and relearning movement skills. Scandinavian Journal of Occupational Therapy, 5(2), 51-57.

 

Clark, J. E., & Oliveira, M. A. (2006). Motor behavior as a scientific field: a view from the start of the 21st century. Brazilian Journal of Motor Behavior, 1(1).


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