Esclerose Múltipla (parte 1)

Publicado por Laura Loturco em

Recentemente eu tive a oportunidade de me voluntariar em um dos eventos anuais promovidos pela Associação de Esclerose Múltipla do Canadá. Cerca de 600 participantes pedalaram por dois dias um total de 200 km entre as cidades de Airdrie e Olds – AB, Canadá. O evento acontece há 21 anos e, neste ano de 2017, arrecadou um recorde de quase CA$600.000,00 que serão, em grande parte, direcionados ao suporte de pesquisas científicas sobre a doença. Entre os ciclistas participantes, estavam pessoas que apresentavam diferentes níveis de comprometimento neurológico causados pela Esclerose Múltipla e que conseguiram cruzar a linha de chegada apesar das limitações físicas e psicológicas impostas pela doença. Essa experiência me inspirou a pesquisar mais sobre a Esclerose Múltipla e compartilhar informações relevantes aqui no Fisio na Pauta. A primeira parte desse artigo traz os conceitos gerais sobre a doença, a classificação atualizada e uma introdução aos tratamentos medicamentosos disponíveis hoje em dia. A parte 2 desse artigo será dedicada a abordar, em maior profundidade, a reabilitação do paciente com EM.

 

A Esclerose Múltipla (EM) é uma doença crônica do sistema nervoso central (SNC) caracterizada por uma atividade inflamatória, mediada pelo sistema imunológico, o qual inicialmente “ataca” a bainha de mielina e os oligodendrócitos (células responsáveis pela formação e manutenção da bainha de mielina) (Wingerchuk, Lucchinetti & Noseworthy, 2001). Trapp et al. (1998) confirmaram que os axônios também sofrem danos permanentes, inclusive em estágios iniciais da doença, possivelmente explicando a causa principal das perdas neurológicas irreversíveis. O quadro clínico da EM é extremamente variável e sua progressão é imprevisível, porém, na maioria das pessoas, o quadro inicial é caracterizado por déficits neurológicos reversíveis evoluindo para uma deterioração neurológica progressiva (Wingerchuk et al., 2001; Compston, 2008; Kalb, 2012).

 

A causa da EM ainda é desconhecida, mas existem fortes indicações que a combinação de fatores ambientais e a predisposição genética estão envolvidos com o desenvolvimento da doença. A prevalência da EM é significantemente maior em países distantes da linha do equador e a idade de migração para esses países pode modificar o risco de desenvolver a doença. Portanto, acredita-se que fatores ecológicos e/ou infecciosos podem estar envolvidos. Existem fortes evidências, na literatura cientifica, de que fatores genéticos contribuem para o desenvolvimento da EM, porém, os genes específicos, que contribuem para essa suscetibilidade ainda não foram identificados (Wingerchuk et al., 2001). De acordo com um levantamento feito pela Federação Internacional de EM (2013), estima-se que, atualmente, 2,3 milhões de pessoas no mundo vivem com EM. O Canadá é o país com a mais alta prevalência da doença. Dados indicam que 1 em cada 340 canadenses são acometidos. No Brasil, a prevalência é relativamente menor. Segundo a Associação Brasileira de EM (ABEM), estima-se que 35 mil brasileiros são portadores da doença. Mulheres apresentam o dobro da suscetibilidade, portanto acredita-se que fatores hormonais também possam estar envolvidos no processo fisiopatológico da doença. Normalmente, os primeiros sintomas aparecem entre 20-45 anos de idade, embora existam casos reportados com inicio durante a infância e em idades mais avançadas (Wingerchuk et al., 2001; Kalb, 2012).

 

A característica principal da EM é a formação de placas escleróticas, que é um tecido de cicatrização resultante do processo inflamatório, do dano e reparo da bainha mielina, e da degeneração neural e axonal (Compston, 2008). Esse processo pode acontecer em qualquer área da substância branca, porém, as áreas periventriculares, nervo óptico, tronco encefálico, cerebelo e coluna espinhal parecem ser mais suscetíveis à essa degeneração (Wingerchuk et al., 2001). Como resultado, a condução nervosa perde sua eficácia e isso leva ao aparecimento dos sintomas típicos da EM. Os axônios, parcialmente desmielinizados, perdem sua capacidade de transmitir os impulsos nervosos na velocidade regular, causando a fadiga fisiológica muito comum em pacientes com EM. Os axônios lesionados também podem produzir impulsos nervosos espontâneos resultando em alterações sensoriais desconfortáveis (Compston, 2008). Apesar dos esforços científicos o processo fisiopatológico da EM ainda é, em grande parte, desconhecido.

 

O diagnóstico da EM é baseado, principalmente, na avaliação clínica. A ressonância magnética é o exame complementar mais indicado para ajudar a determinar a atividade e extensão das lesões (placas escleróticas), e para monitorar a progressão da doença (Polman et al., 2010). Alguns sintomas são particularmente específicos da EM, como, por exemplo, o sinal de Lhermitte (sensação de descarga elétrica que percorre a coluna e membros quando se realiza flexão de cabeça) e o fenômeno de Uhthoff (piora dos sintomas neurológicos causado por um aumento da temperatura corporal) (Kalb, 2012). Outros sintomas neurológicos clínicos comuns são: alterações sensoriais nos membros, neurite óptica (perda aguda da visão), marcha atáxica, fadiga dependente do ciclo circadiano (piora da fadiga no final da tarde e com o aumento da temperatura corporal) e distúrbios do controle de esfíncter. Na maioria dos casos, esses sintomas evoluem no decorrer de dias e melhoram após algumas semanas. Eventualmente, os sintomas neurológicos se tornam mais progressivos causando a perda da função e mobilidade. Metade dos pacientes, diagnosticados com EM, necessitarão de algum tipo de suporte para ambulação em aproximadamente 15 anos após o diagnóstico da doença (Wingerchuk et al., 2001).

 

Baseado nos avanços científicos alcançados nos últimos anos, o “Comitê Regulador Internacional sobre Ensaios Clínicos em EM”, juntamente com o “Comitê Europeu para o tratamento e Pesquisa em EM”, propuseram uma classificação atualizada para as diferentes formas de apresentação da EM. De acordo com o sistema de classificação proposto, o primeiro episódio de sintomas neurológicos é denominado Síndrome Clinicamente Isolada (SCI). Curiosamente, alguns pacientes que apresentam sintomas característicos de uma desmielinização inflamatória do SNC, não chegam a desenvolver EM. O risco de desenvolver EM é de 60-80%, caso a ressonância magnética detectar a presença de lesões no cérebro e na coluna espinhal, consistentes com os dados normativos das pessoas que apresentam a doença. O curso mais comum da EM é conhecido por surto-remissão, ou EM Remitente Recorrente (EMRR), caracterizado por períodos de exacerbação dos sintomas neurológicos seguidos de períodos de recuperação total ou parcial desses sintomas. Cerca de 85% da pessoas com EM são, inicialmente, diagnosticadas com EMRR. Eventualmente, observa-se uma transição gradual para uma fase mais progressiva da doença conhecido como Secundária Progressiva (EMSP), caracterizada por uma deterioração lenta e constante do tecido nervoso e conseqüente efeito acumulativo dos déficits neurológicos. Essa transição, leva em media, 10 anos à partir do diagnóstico inicial de EMRR. A forma mais progressiva da EM é conhecida como Primaria Progressiva (EMPP). Suas características fisiopatológicas são muito parecidas com a EMSP, sendo que a diferença principal se dá pela ausência do período inicial de relapsos e remissões antes da doença se tornar progressiva. Normalmente, o diagnóstico inicial da EMPP acontece em pessoas com idade entre 40 e 50 anos. Já a EMRR é comumente diagnosticada em pessoas ente 20 a 30 anos de idade (Lublin et al., 2013).

 

O tratamento da EM tem objetivos diferentes dependendo do quadro clínico apresentado pelo paciente e a fase em que a EM se encontra. Durante os períodos de exacerbação é comum o neurologista prescrever altas doses intravenosas de corticosteróides durante um curto período de tempo. Essa medida tem por objetivo reduzir a atividade inflamatória e, conseqüentemente, mitigar os danos à bainha de mielina e aos axônios. A prescrição de imunossupressores, conhecidos como medicamentos modificadores da doença, tem sido usado desde a década de 90 para o tratamento de pessoas que vivem com EMRR. Estudos científicos mostraram que esses medicamentos são efetivos tanto para tratar os sintomas da EM, assim como minimizar a progressão da doença (Goldenberg, 2012; Klab, 2012; Wingerchuk et al. 2001). Diversos órgãos de pesquisa da EM recomendam que o tratamento com medicamentos modificadores da doença devem começar assim que os primeiros sintomas de EM aparecerem, pois existe relevante evidência essa medida pode reduzir a possibilidade de um segundo episodio de exacerbação (Goldenberg, 2012). No Brasil, o tratamento medicamentoso é custeado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), isso dá a oportunidade para todos iniciarem o tratamento com mais com rapidez e possivelmente diminuir o impacto individual e social resultante das disfunções causadas pela EM (Brandão et al., 2011). Atualmente, nenhum medicamento é aprovado para o tratamento de pessoas com EMPP (Klab, 2012).

 

A reabilitação física é um componente essencial no tratamento da EM. Por ser uma doença que apresenta uma variabilidade grande de sintomas, é comum que diferentes profissionais estejam envolvidos no tratamento do mesmo paciente. Dessa maneira, a colaboração de um time multi e interdisciplinar, é importante para melhor atender as demandas do paciente e sua família. A fisioterapia tem por objetivo o auxílio na recuperação da função e mobilidade quando possível e de ajuda da adaptação do paciente à suas limitações físicas.

 

Para mais informações também acesse: 

Associação Brasileira de Esclerose Multipla (ABEM)

National Multiple Sclerosis Society

Multiple Sclerosis Society of Canada

 

 

Laura Loturco

Equipe Fisio na Pauta

 

Como citar esse artigo:

Loturco, L. (2017). Esclerose Múltipla (parte 1). Retirado de: https://fisionapauta.com.br/esclerose-multipla-parte-1/. Acessado em ______.

 

Referências Bibliográficas:

 

Brandão, C. M. R., Júnior, A. A. G., Cherchiglia, M. L., Andrade, E. I. G., Almeida, A. M., da Silva, G. D., … & de Assis Acurcio, F. (2011). Gastos do Ministério da Saúde do Brasil com medicamentos de alto custo: uma análise centrada no paciente. Value in Health14(5), S71-S77.

 

Compston, A., Coles, A. (2008, Oct 25). Multiple sclerosis. Lancet 359, 1221–1231.

 

Goldenberg, M. M. (2012). Multiple sclerosis review. Pharmacy and Therapeutics, 37(3), 175.

 

Kalb, R. (2012). Multiple Sclerosis: A Focus on Rehabilitation 5th edition. Retrived from https://www.nationalmssociety.org/NationalMSSociety/media/MSNationalFiles/Brochures/A-Focus-On-Rehabilitation_Final-Links.pdf, acessado em 31/07/2017.

 

Lublin, F. D., Reingold, S. C., Cohen, J. A., Cutter, G. R., Sørensen, P. S., Thompson, A. J., … & Bebo, B. (2014). Defining the clinical course of multiple sclerosis The 2013 revisions. Neurology83(3), 278-286.

 

Polman, C. H., Reingold, S. C., Banwell, B., Clanet, M., Cohen, J. A., Filippi, M., … & Lublin, F. D. (2011). Diagnostic criteria for multiple sclerosis: 2010 revisions to the McDonald criteria. Annals of neurology69(2), 292-302.

 

Trapp, B. D., Peterson, J., Ransohoff, R. M., Rudick, R., Mörk, S., & Bö, L. (1998). Axonal transection in the lesions of multiple sclerosis. New England Journal of Medicine338(5), 278-285.

 

Wingerchuk, D.M., Lucchinetti, C.L., Noseworthy, J.H. (2001). Multiple Sclerosis: Current Pathophysiological Concepts. Laboratory Investigation, 81 (3), 263-281.


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